Tecnologia

Como a pós-verdade impediu o diálogo sobre o caso QueerMuseu


Um dos elementos mais importantes para a construção da democracia é o diálogo, pois é o que permite a troca de ideias, a avaliação coletiva da realidade, a proposição de caminhos a serem seguidos pela sociedade. Em um mundo intermediado pelas redes sociais, eu me pergunto: será que elas ajudam na construção de diálogos? O que me parece é que, além de não serem um espaço projetado para o diálogo construtivo, as redes sociais ainda promovem um comportamento completamente contrário à troca de ideias: o do menosprezo aos fatos concretos.

Pós-verdade e o desprezo da verdade

A cada ano, o dicionário da Universidade de Oxford escolhe uma "palavra do ano". Em 2016, a palavra foi "pós-verdade", um substantivo que, de acordo com a definição do dicionário, "se relaciona a ou denota circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que a apelação à emoção e à crença pessoal". Em outras palavras, pós-verdade significa ignorar os fatos e explorar a emoção e os pré-conceitos pessoais para formar uma opinião pública.

A pós-verdade pode ser observada em diversos casos recentes e famosos. O caso que mais se destaca mundialmente é o do presidente Donald Trump: por mais que os fatos já tenham sido apurados e apresentados publicamente (em muitos casos, com registros gravados), Trump simplesmente os ignora e publica suas mensagens cheias de invenções e apelações emotivas. Mas o pior é o que vem depois disso: uma massa de seguidores do presidente também ignora os fatos e compartilha suas mensagens pelas redes. E assim, se concretiza uma antiga piada no jornalismo: "se a versão é melhor que o fato, publique-se a versão".

A pós-verdade no caso do QueerMuseu

Ninguém que seja minimamente informado ficou imune do grande acontecimento da semana passada: a exposição de arte QueerMuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, com 270 obras de artistas diversos que abordavam questões de gênero (algumas delas com referências sexuais e homoeróticas), foi cancelada pelo Santander Cultural de Porto Alegre depois da instituição ter sofrido ataques da população mais conservadora.

O fato trouxe muitas questões à tona. Não vou me alongar na questão moralista e nem no debate sobre o que é arte, pois muita gente de sua rede social já deve ter comentado sobre isso. Entretanto, é preciso relembrar alguns acontecimentos bem específicos para entendermos como a praga da pós-verdade atacou com força neste episódio. Mais especificamente, os acontecimentos envolvendo o compartilhamento de mentiras.

Primeiro, o ponto inicial da polêmica: alguns usuários compartilharam a imagem de um quadro que retrataria um caso de pedofilia. Depois, um quadro que teria apologia à zoofilia.

As publicações, acompanhadas de acusações objetivas e raivosas, foram feitas inicialmente por pessoas que não se deram ao trabalho de pesquisar (minimamente que fosse) o significado dos quadros. Como consequência, muitas das acusações continham informações bastante erradas, algumas inventadas, sem conexão com a realidade. É o tal do imediatismo irresponsável, tão presente nos sites de redes sociais e tão característico da pós-verdade. E o resultado imediato foi, como se esperava, devastador: milhares de pessoas compartilhando as acusações raivosas e, em boa parte delas, completamente falsas.

Acusações e mais acusações, mesmo que sem fatos

A curadoria da exposição teve suas falhas. Uma delas foi a de não ter colocado uma classificação indicativa de idade na entrada, para dar aos pais a liberdade de escolher se levavam ou não seus filhos lá para dentro. Entretanto, são tipos de falhas que poderiam ser resolvidos no andamento da exposição, sem a necessidade de cancelamento.

O que realmente me incomodou, mesmo, foi o cancelamento baseado em mentiras espalhadas nas redes. Uma pesquisa minimamente cuidadosa dos fatos mostraria que a obra das crianças não tinha qualquer indício de pedofilia: era uma pintura que retratava pessoas homossexuais na sua infância e que foi totalmente baseada em fotografias enviadas pelas próprias pessoas a um blog destinado a fazer exatamente isso: permitir que homossexuais publicassem suas próprias fotos de infância para mostrar ao mundo, de forma voluntária, que a homossexualidade deles vem desde o início e que eles não se envergonhavam disso. Ou seja: absolutamente nada a ver com o conceito de pedofilia.

Outra pesquisa rápida dos fatos viria a mostrar que o quadro "com apologia à zoofilia" tinha como título "Cena de interior II", indicando que a pintura apenas representa visualmente, desde que foi pintada em 1994, casos reais que ocorrem com frequência no interior do Brasil. A zoofilia é uma realidade, a exploração sexual de empregados negros é uma realidade, e o quadro usa arte moderna para representar esta incômoda realidade. Se a representação de fatos reais incômodos fosse o mesmo que apologia, deveríamos proibir imediatamente quaisquer filmes sobre a II Guerra Mundial e sobre a Guerra do Vietnã, pois fariam apologia à guerra.

Desdobramentos pós-verdadeiros

Mesmo depois desta propagação de informações falsas, a pós-verdade continuou atacando forte. Alguns perfis conservadores, como o do deputado Carlos Bolsonaro, publicaram informações de que a exposição continha um espaço para que as crianças se tocassem nas genitálias para que "alterassem a percepção de gênero". Usaram como base da acusação uma imagem da instalação "O Eu e o Tu", da famosa artista Lygia Clark, que tinha sido exposta em outro evento. Mais uma vez, uma notícia falsa e amplamente compartilhada por pessoas que, com a maior naturalidade do mundo, ignoram os fatos.

Na era da pós-verdade, os fatos não têm mais valor no debate. Na era da pós-verdade, o que realmente vale no embate de argumentos é a crença pessoal e a emoção. Em vez de se lutar pela busca da verdade, o que as pessoas fazem nas redes sociais é tentar espalhar as suas versões mais rapidamente que os outros, independentemente da veracidade contida nelas. Ganha o debate público quem grita mais alto e mais rápido.

O hábito do compartilhamento imediato de informações sem checagem nas redes sociais é devastador, porque tem o potencial de destruir reputações rapidamente com base em mentiras. E não adianta ao acusado apresentar posteriormente os fatos que comprovam sua inocência: em época de supercompartilhamento, bastam alguns minutos para que o estrago seja irreversível. Até que sua defesa seja percebida pelas pessoas na rede, a acusação já rodou meio mundo. E quando sua defesa embasada em fatos for notada pelas pessoas, boa parte delas vai ignorar os fatos e ficar com as versões infundadas.

Com a evolução da tecnologia multimídia, a pós-verdade só tende a piorar

É triste constatar que estamos longe de chegarmos a uma solução em relação a este comportamento. E o pior é saber que a rápida evolução da tecnologia digital está se encaminhando para um poder inacreditável de manipulação visual e sonora da realidade, o que tende a agravar a efetividade da pós-verdade. Um exemplo está no recente projeto de pesquisa chamado "Face2Face", demonstrado no vídeo abaixo: um grupo de pesquisadores conseguiu fazer com que os rostos filmados de celebridades fossem manipulados em tempo real, usando uma tecnologia de mapeamento dos movimentos para aplicar nestes rostos as expressões faciais de um segundo rosto.

Se atualmente as pessoas já ignoram os fatos apurados e registrados, você consegue imaginar como seria a situação com a implementação desta tecnologia desenvolvida no projeto Face2Face? Assim que ela for dominada por criadores de notícias falsas, será grande a probabilidade de vivermos em um mundo em que nem mesmo os fatos estarão a salvo. Teremos um ambiente em que as versões fantasiosas estarão embasadas por fatos fantasiosos.

Uma única solução possível

A solução ideal para este cenário seria a de um botão de compartilhamento que, quando fosse acionado, fizesse o trabalho de apuração dos fatos e nos informasse que a informação prestes a ser compartilhada é verdadeira ou falsa. O botão nos alertaria: "essa publicação contém mentiras. Você quer mesmo continuar?". Porém, infelizmente, essa solução não deverá chegar tão cedo. Por enquanto, este papel ainda é nosso, dos usuários das redes, mas muitos têm preguiça (ou má fé mesmo) e não costuma fazer a verificação antes de publicar nas redes sociais.

Então, é preciso que nos demos conta da nossa responsabilidade neste futuro distópico e entender que ele só poderá ser diferente se nós formos diferentes. Por isso, minha sugestão é: que sejamos minimamente responsáveis pelo que compartilhamos. Se você compartilha acusações sem pesquisar pela sua veracidade, você é um dos criadores deste cenário futurístico horrendo.

Minha principal sugestão é refletir que a qualidade deve sobrepor a quantidade. Antes de compartilhar qualquer informação, tenha certeza da qualidade da informação. Afinal, também somos o que expressamos.


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